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Aconteceu...
O destino quase sempre nos oferece muitos caminhos, e nem sempre sabemos escolher o melhor. Na maioria das vezes, só tarde demais percebemos nossos erros de escolha. A estória a seguir retrata bem a dificuldade que temos em fazer a escolha certa.
Viagem - levado pelo destino
A noite parecia bem mais escura com aquela garoa que teimava em cair. Desde que o ônibus deixara o terminal rodoviário da pequena cidade de Passos, em Minas Gerais, e alcançara a rodovia interestadual, aquela chuvinha fina teimava em embaçar o para brisas e a alma do velho Antonio que sentado logo atrás do motorista, tinha os olhos grudados no asfalto negro cortado por linhas, ora brancas, ora amarelas, pontilhadas ou contínuas, com aquele efeito hipnótico, enquanto seus pensamentos formavam turbilhões dentro da sua cabeça, voltando ao passado e, de repente, num relance lá estavam eles especulando o futuro.
Enquanto olhava para o tapete negro, quase fantasmagórico com aquelas sombras formadas pelas luzes dos outros veículos, sua mente procurava desesperadamente explicações para o que estava acontecendo. Afinal como viera parar dentro de um ônibus indo para longe de tudo o que tinha como seu, até então. Procurava em vão entender como tudo começara.
Era um desses veículos modernos, confortável, silencioso, o ar condicionado deixava um frescor que convidava, juntamente com as luzes na menor intensidade, a quase todos cochilarem, exceto alguns mais viciados em wats app, que insistiam em manter aqueles pequenos clarões iluminando a noite.
Antonio já era entrado em anos, mas não aparentava a própria idade. Sempre foi um trabalhador forte, acostumado, desde criança, a trabalhar bastante. Primeiro com o pai, Mecânico de caminhões e automóveis que lhe ensinou tudo o que sabia. Logo que completou o curso ginasial, na época, foi convocado para servir o Exército e teve que deixar a cidade natal, Araranguá em Santa Catarina, para incorporar em Curitiba. A partir dai foi perdendo o contato com a família e, por muitos anos esteve afastado de todos. Agora, depois de tanto tempo, tentava coordenar as idéias para se preparar para uma situação nova.
Saindo do exército voltara para sua casa junto a seus familiares, onde deixara suas marcas. Estava se preparando para enfrentar um mundo novo, um mundo com maiores responsabilidades.
Sua mãe costureira conhecida, tinha uma clientela fiel e entre essas clientes, uma chamou sua atenção. Era chamada de Mariazinha, assim mesmo no diminutivo, exatamente por sua baixa estatura mas era bonita, bem falante, gerente de uma grande loja de departamentos e frequentadora assídua da casa de sua mãe, sempre com a desculpa de levar alguma peça de roupa para confecção ou conserto. Numa análise mais profunda, percebia-se outras intenções: na maioria das vezes com uma desculpa sempre na ponta da língua, lá estava ela nas horas mais inusitadas, sempre com a sorte de encontrar Antonio em casa, seja por folga de fim de semana ou por já ser final de expediente. Ela era bem mais velha que ele, na realidade, exatamente treze anos a mais. Essa experiência e independência, tanto pessoal quanto financeira, logo fez com que esses encontros ficassem cada vez mais frequentes até que, depois de alguns meses, resolvessem assumir um relacionamento permanente. A reação das famílias foi das piores possíveis. Logo se viram completamente sós. Mesmo assim tinham uma vida boa.
Ele, um jovem criado no interior onde as regras de namoro eram rígidas e por isso mesmo só tivera algumas namoradas de juventude, com, no máximo alguns beijinhos roubados as escondidas, conhecido algumas mulheres da "Casa da luz vermelha", com quem apenas havia tomado algumas doses de "Cuba Libre", mistura de Coca Cola e Gin e se satisfeito com as revistas pornográficas da época, que aliás hoje são consideradas mais que recatadas. Agora, com essa mulher, começava a aprender que a vida sexual tinha muito mais coisas do que ele podia sonhar. Ela sentia prazer em ensinar cada vez mais, faze-lo ficar mais exitado a cada dia. Assim sua vida ficou resumida ao trabalho e a volta para casa, situação que durou até que alguma coisa começou a mudar.
A ação atual era de quem estava deixando para trás e, finalmente um reencontro com o que restava dos parentes que deixara há tanto tempo.
Estava tentando colocar ordem nos pensamentos quando sentiu que o ônibus diminuía a velocidade. Era a parada para descanso e troca de motorista. Com uma imensa vontade de fumar, foi dos primeiros a deixar o veículo.
Na plataforma, seguindo com o olhar a fumaça do cigarro, esqueceu por um momento para onde estava indo e se voltou para o passado. Um passado bem distante, quando deixou o serviço militar e, ainda na casa da mãe, deu seus primeiros passos como caminhoneiro, começando a dirigir uma caminhonete de entregas de auto peças para uma loja especializada.
Foi um período de aprendizado, trocara a vida militar que, embora fosse trabalhosa era gratificante...
Ainda absorto, mal percebeu que os passageiros haviam voltado a seus lugares. O tapinha nas costas, dado pelo motorista o trouxeram de volta ao presente.
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Devidamente acomodado na poltrona, Antonio procurou se concentrar numa conversa que chamou sua atenção pelo inusitado do assunto. Era entre um senhor que aparentava já uma idade mais avançada e um jovem moreno, que mais ouvia que falava, já que o mais velho não lhe dava tempo para retrucar. Na verdade era mais um monólogo que propriamente uma conversação. O assunto girava em torno de um acidente ocorrido tempos atrás no qual o narrador teve participação ativa. Falava rapidamente, como se tivesse medo de ser interrompido e, num linguajar meio caipira, tornando mais interessante e até certo ponto engraçada, aquela tragédia onde o ônibus em que viajava tombou e na confusão que se formou o aspirante a herói havia salvo nove passageiros. Apenas nove, afirmava com convicção, só não salvou mais porque os outros se recusaram a ser salvos. Alguns risinhos foram ouvidos aqui e ali mas ele insistia em dizer que era pura verdade, assim como era verdade também que se havia atirado do alto do edifício Joelma, por ocasião do incêndio que o destruíra em 1974. foi salvo por milagre, afirmava. Os bombeiros o apanharam com uma rede pouco antes de chegar ao chão. Aliás dois milagres, já que também pulara do edifício Andraus, tomado também por um incêndio em fevereiro de 1972. E para provar abria a camisa para mostrar o peito cabeludo e cheio de invisíveis cicatrizes que as chamas que saiam das janelas, haviam deixado quando ele passou voando rumo ao chão. Agora os risos abafados deixaram de ser abafados e se misturavam com comentários zombeteiros. Nesse momento Antonio procurou puxar conversa e perguntou ao, agora super herói:
- Amigo, poderia me tirar uma dúvida?
- Pois não, que gostaria de saber?
- Nessas andanças e aventuras todas, por acaso sabe algo sobre o Titanic?
Seus olhos se arregalaram com uma legítima expressão de surpresa e a resposta veio como outra pergunta:
- Como o senhor sabe? Claro que eu estava lá! Eu ajudei a baixar os botes salva vidas.
Agora o riso foi geral e escancarado. Os comentários aumentaram e todos queriam saber quem realmente era aquele senhor tão estranho. Estranho mas simpático, tinha sempre uma resposta pronta e convincente para qualquer inquisição sobre suas aventuras, que aliás foram muitas mais, tanto que essas histórias só cessaram quando da chegada a São Paulo, destino final do ônibus mas não do Antonio, que ainda tinha muito que viajar. Ao menos ficaram sabendo alguma coisa sobre o estranho passageiro aventureiro.
Algumas pessoas procuraram o fiscal da empresa, que despachava passageiros e suas bagagens e finalmente tiveram alguma explicação a respeito. Segundo o fiscal, este senhor era um aposentado que vivia praticamente só em uma pequena cidade mineira chamada Três Pontas. Como não pagava passagem, já que se beneficiava da lei do idoso, frequentemente comprava uma passagem para qualquer cidade que quisesse conhecer, retornar ou apenas para mais um passeio. Invariavelmente fazia amizades com outros passageiros e contava sempre as mesmas histórias, por isso já era um velho conhecido do pessoal de algumas empresas de ônibus. Como nunca houvessem feito alguma reclamação ou desagravo contra ele nas empresas, era tolerado e, as vezes até bem vindo, pois várias vezes em algumas paradas forçadas e demoradas devido a acidentes ou liberação de pistas, ele amenizasse o nervosismo dos outros passageiros.
Finalmente o terminal de ônibus de São Paulo. O pensamento de Antonio voltava-se agora para garantir sua conexão para seguir viagem. Já tinha feito antes esse trajeto e sabia exatamente qual a empresa que deveria procurar e comprar a passagem para continuar.
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Sem mais demora chamou um carregador e pediu para tomar conta da bagagem, preencheu o cartão e foi a procura da sua conexão para poder saber o horário em que o carregador deveria entregar a bagagem no devido terminal. Subiu até a ala dos guichês e foi a procura da empresa de ônibus que sempre utilizara para seguir viagem. Qual não foi sua surpresa ao descobrir que o guichê que procurava estava fechado, mas, era cedo e resolveu tomar um café, fumar um cigarro e esperar que abrisse. Pouco mais tarde voltou e encontrou o guichê ainda fechado e foi informado pelo atendente da empresa ao lado que essa empresa já não fazia a linha que lhe interessava. De posse da informação de qual era a nova transportadora, para lá se dirigiu e descobriu horrorizado que só haveria ônibus as oito horas da noite, naquele domingo que, por ironia do destino, fazia parte de um feriadão que ele havia esquecido completamente.
Analisando as possibilidades de novas conexões, chegou a conclusão que não valeria a pena, estava com bastante bagagem e todas as conexões tentadas o levariam apenas a mais paradas pelo caminho chegando ao destino praticamente no mesmo horário. Que remédio, só restava esperar até a noite. Estava preso, pelo menos por um dia, no maior terminal de ônibus da America Latina. Isso até lembrava um filme...
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Depois de um café e um cachorro quente meio frio, depois de reclamar dos preços, da falta de delicadeza e boa vontade da atendente, dirigiu-se a o fumódromo. Era um local aberto, patamar de uma das rampas de acesso ao terminal, que fora fechada para dar um pequeno espaço aos fumantes. Pequeno mesmo, dada a quantidade de frequentadores.
Encostado no corrimão acendeu um cigarro e, observando a rua abaixo voltou os pensamentos para o passado.
Lembrou da primeira casa, comprada em Curitiba ainda com Mariazinha, a primeira esposa e professora de vida onde passaram bons momentos e onde nasceu a filha do casal batizada como Naya Vanessa. Lembrou dos tempos de caminhoneiro, das viagens free lancer feitas para levar ônibus novos para Santiago do Chile, das paisagens Andinas na cordilheira e da serra conhecida como "Los Caracoles". Tudo isso até conseguir uma colocação na cidade de Lages em Santa Catarina e mudar-se para lá depois de vender a casa de Curitiba.
La compraram uma casa num bairro chamado Petrópolis onde algum tempo depois, montou uma pequena oficina mecânica e aproveitou, usando o tempo livre, para planejar a construção de um helicóptero, uma proeza realizada em dois anos que o tornou conhecido como o "Louco do Petrópolis". Afinal no dia da tentativa de voar, a notícia arrastou uma multidão para ver o desastre. Depois de tudo preparado, o povo deitado no gramado do Morro Grande com medo que a hélice principal se soltasse, Antonio sentado com a mão no manche, capacete de ciclista na cabeça e óculos de soldador sem a lente escura nos olhos, acenou e começou a soltar a embreagem do motor de fusca adaptado, para dar os primeiros giros na hélice principal.
Já nas primeiras voltas sentiu algo errado, a trepidação estava demasiada. A medida que o giro aumentava, aumentava também a chacoalhar da estrutura até que, quase tendo sido expulso do "cokpit pela tremedeira, desligou tudo e saiu do objeto que deveria ser voador.
Como é Seu Antonio! Não vai voar? - começaram a perguntar.
- Eu gosto é de fazer - respondeu - Se tiver um louco com coragem para voar nisso, aqui está a chave.
Ninguém se apresentou e o tal Helicóptero foi tema de piadas durante um bom tempo, servindo apenas para alguns pais tirarem fotos das crianças brincando de pilotos.
Ainda sorrindo ao lembrar dessa façanha, percebeu que estava sendo abordado por um desses evangélicos devidamente uniformizado com calça preta, camisa branca sem manga, gravata e bíblia debaixo do braço. Ao cumprimento do tal pastor respondeu erguendo o braço com a mão espalmada: Saravá meu Pai!!! --É difícil descrever a expressão estampada no rosto do "Crente".
Após alguns minutos, passada a surpresa o recém chegado perguntou: O senhor é mesmo da Macumba? Aliás, qualquer crença que não tenha a Bíblia como referência, é para eles parte do que chamam de Macumba.
--Não. Respondeu. A não ser que um Ateu possa ser considerado Macumbeiro.
Jesus! Bradou o suposto crente, o Senhor não acredita em Deus?
--Como posso acreditar num Deus que é apresentado pelas religiões como a sua, como sendo um Deus dinheirista, mau, vingativo, repetitivo, matador até de criancinhas e que só quer bajulação? Um Deus que tudo vê, tudo sabe, mas não faz nada para aliviar o sofrimento de alguém.
---Por favor! Não pode falar assim de Deus! Suas palavras o farão sofrer no fogo do inferno! - retrucou.
---Está vendo?Um Deus que não me dá o direito sequer de discordar. ---Agora pense: De acordo com alguns Pastores, (Não meus pastores, sou um homem, não uma ovelha) Deus precisa de um templo suntuoso onde possa ser adorado. Tudo feito com o dinheirinho suado de quem não tem quase nada na vida e se apega a uma fé cega.
Um deus que, segundo nos apresentam, é extremamente mau. Não leio muito a bíblia mas, pelo que ouvi e posso deduzir, Êle vem fazendo o homem sofrer há muito tempo. Basta olhar para o povo que o tal Moisés libertou do Egito. Para tanto teve que mandar sete pragas, quase destruiu uma nação que, de um modo ou de outro, tinha gente boa, mulheres e crianças, mortas a mando de Deus para libertar um outro povo que, duvido, não tivesse também seus pecadores e que, me parece ficou vagando no deserto por quarenta anos. Em quarenta anos se não fossem burros, teriam saido do deserto e encontrado terras férteis.
Um Deus que manda matar mulheres a pedradas por praticarem adultério, depois engravida uma virgem e abandona o filho a própria sorte para ser morto numa cruz.
Nesse momento percebeu que o tal pastor estava a orar e a balbuciar palavras sem sentido, como se estivesse em transe. Fez uma pausa, esperou que o pastor se recuperasse e perguntou:
---Que acha pastor? É esse o teu Deus? Olhe para as crianças morrendo de fome na Africa ou morrendo com as bombas no Oriente Médio... Onde estava Deus quando Hitler torturou e matou cerca de sessenta milhões de Judeus agora, já na idade moderna?
Então se deu conta que uma quase multidão se aglomerava no "fumódromo" e resolveu encerrar sua participação. Estendeu a mão ao pastor, agradeceu a atenção e, sem dar tempo para que retrucasse, foi se afastando devagar e pensando em quanto mais teria para falar, afinal tinha tantas idéias, tantas perguntas a respeito desse tema...
Mas era hora de pensar em prosseguir viagem, pensar no que faria quando chegasse, como seria recebido e parar de pensar no que havia deixado para trás.
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